Sobre escala 6X1 (ou de uma visão pessoal)
Vou confessar. Nunca trabalhei nessa escala. Me sinto privilegiada por ter tido formação superior e ter começado a trabalhar efetivamente com carteira assinada depois da faculdade. Não é todo mundo que tem essa realidade, infelizmente.
Tive esse privilégio porque meus pais não tiveram no passado. Meu pai chegou até se formar na faculdade, mas acabou que no fim não usou a formação por completo. E ele conseguiu se formar porque meu avô, um pequeno agricultor familiar muito do conversador e semi-analfabeto, arranjou um jeito de formar todos os filhos. Os mais jovens trabalhavam na lavoura enquanto os mais velhos iam para faculdade. Todos tem ensino superior, inclusive as mulheres, que logicamente, na época, na década de 1970, se formaram em licenciaturas.
Meu pai fez ensino superior e se formou em Ciências Contabéis. O curso ajudou a ser gerente de lojas nas décadas de 1980 e 1990. Ele, sim, trabalhava na escala 6X1.
No fim da década de 90, meu pai era gerente de transportadora. Lembro que era pequena e ia com ele à noite no escritório. Para mim, era uma aventura. Lá, tinha um computador com aquele jogo de pontos. Adorava aquilo. Foi lá a minha primeira experiência usando um computador. Lembro que sempre era noite. Meu pai falava: “vamos na empresa?”. E eu ia muito feliz porque podia usar o computador. Como uma pessoa que gosta de papelaria na vida adulta, os materiais do escritório sempre me despertavam interesse na infância. Aquela folha enorme na mesa do escritório, a caixinha com várias canetas e réguas, o grampeador, enfim, todos os materiais naquela mesa de escritório me fascinava. Então, toda a oportunidade para mim ir com meu pai no escritório era uma festa! Sair de casa à noite? Que chique!
Mas eu tinha 7 anos. Não sabia o que era escala 6X1. Meu pai sabia desde a década de 80. Na década de 70, durante a ditadura militar, ele estava trabalhando na lavoura. Trabalhou até se formar. Depois, foi fazer faculdade. E trabalhava lá também. Meu avô ajudava, mas ele tinha que trabalhar. O trabalho nunca foi uma escolha para ele. Mas para ele, trabalhar era digno.
Nessa década de 90, quando eu acompanhava meu pai, eu não tinha ideia da rotina do trabalho. Era uma criança que pela primeira vez experimentava o que era ter infância em uma constituição com vistas ao direitos humanos. Fui na escola desde o pré. Não passava fome. Fazia até balé. Tinha uma vida confortável de classe média.
Tudo isso era auxiliado pelo trabalho do meu pai, que estava na escala 6X1. Mas essa escala não era muito respeitada. Como disse, ele ia à noite na empresa. Enquanto para mim, era uma diversão, para meu pai era um trabalho. Ele ia para receber caminhões e ajudar a descarregar mercadorias.
Isso aconteceu até ele ser demitido no final da década. É na virada do século que minha família passa por transformações financeiras. Quando foi demitido, meu pai entrou com um processo porque aquelas cargas que ele ajudava eram químicos e ele teria que receber uma compensação, que, logicamente, a empresa não pagou. Depois de um tempo na justiça, meu pai conseguiu receber a indenização.
E, assim, como todo trabalhador que por muito tempo foi explorado, ele decidiu empreender. No Brasil, o empreendedorismo acontece por necessidade. Seja a falta de emprego ou a vontade de não ser explorado, muitos trabalhadores se tornam empreendedores sem ao menos ter estudo para isso.
Meu pai tinha algum estudo. Era formado em Ciências Contábeis. E conhecia o ramo da logística e do transporte. Mas aquilo não é suficiente. Meu pai ainda carrega algumas características que os publicitários atribuem aos boomers. Ao empreender, meu pai se tornou o chefe. Aquele que manda. E ninguém manda mais nele.
Porém, a escala 6X1 continuou. Ele abriu transportadora, fechou transportadora. Abriu e fechou umas três vezes. Sempre com contratos de terceirização com empresas grandes. Foi assim, que nossa casa se transformou em um depósito de uma filial. Antes, a casa que tinha uma garagem, passou a ter caixas amontoadas. O pequeno quarto da bagunça, se transformou em um escritório. Tudo isso aconteceu depois de meu pai tentar alugar um depósito, montar a empresa lá, mas as despesas ficaram muito caras e aí a empresa foi levada para casa.
Para mim, novamente, foi ótimo! A menina que descobriu o computador na infância, tinha um computador com internet discada durante a pré-adolescência. E na adolescência, esse computador passou a ter banda larga. Fui uma das primeiras a ter banda larga.
Para minha mãe nem sempre foi ótimo. Ela era costureira e por tempos fez costuras para fora. Chegou a trabalhar em uma confecção, mas não ficou muito tempo. Lembro que uma vez montaram uma loja. Eu era muito pequena e a única coisa que lembro é estar no chão desenhando vestidos de princesas nas revistas de moda que minha mãe tinha para retirar os modelos. Mas lembro que de vez em quando ficava com uma pessoa, uma menina loira, enquanto minha mãe trabalhava.
A infância do meu irmão foi assim também. Enquanto minha mãe ajudava meu pai na empresa dele, que estava na minha casa, meu irmão ficava com nossa babá, que também fazia a comida. Ela cuidou dele desde que era bebê. A Dona Lúcia, como chamávamos, era uma mulher gorda, com cabelos longos, lisos e sempre amarrado em um coque. Tinha pouco cabelo no início e parecia que estava começando uma pequena calvície. Usava um óculos fundo de armação preto, tinha dedos bem gordinhos e as unhas curtas, roídas. Crente, sempre usava uma saia de jeans e camiseta, além do chinelo havaianas. Não lembro de ela usar outro calçado. Nem no inverno. E estamos falando de um Rio Grande do Sul de mais de 15 anos atrás, quando o frio era ainda mais frio que os dias atuais.
Foi com ela que vi a pobreza pela primeira vez. Com meu pai foi trabalhar com empresa própria e minha mãe fazia costuras, sempre tínhamos um orçamento limitado. Mesmo assim, tínhamos uma casa própria, meu pai tinha um Chevette e tínhamos a rotina de passar férias ou ir em feriados para casas de parentes. Uns mais ricos, com apartamento e carro mais chique, outros mais pobres, com carros mais baratos e casas mais simples no interior, onde eles trabalhavam com agricultura familiar. Mas todos tinham casas próprias e carro. Mesmo que simples.
A casa de Dona Lúcia era alugada. Não lembro quantos quartos. Mas lembro que o portão não era uma grade. Era meio pendurado e fazia um rangido. A casa praticamente não tinha quintal. Era de madeira com a parte exterior pintada de verde. Tinham árvores ao redor, que de certa forma dariam um frescor na casa. Mas era verão. E verão no Rio Grande do Sul, que apesar de ter frio, tem um verão especialmente quente.
Dona Lúcia morava com a irmã e vários sobrinhos. Não lembro quantos. Mas parecia muita criança. A casa não era grande. Tenho a impressão de que eram dois quartos. Na minha casa, eu e meu irmão tínhamos quartos separados. Lá, dormiam junto. Lembro de imaginar que eram muitas pessoas numa mesma casa. Mas não chegava a pensar como dormiam. Acho que tinha entre 8 anos e 10 anos.
Lembro da casa ser muito quente. Hoje entendo que era o teto de zinco. Mas na época não sabia. Só sentia que era muito quente. Tinha um ventilador, mas ele era velho e não ventilava bem. Não lembro do cheiro, mas lembro que não gostava do cheiro. Aquele lugar não cheirava bem. Era sufocante.
Hoje, adulta, sei que aquele local era uma casa de uma pessoa pobre no início do século 21. Uma mulher solteira e evangélica, que não teve filhos, mas cuida das crianças da irmã, que trabalha. Nunca vi os pais da irmã. Imagino que trabalhava também. Mas nunca ouvi a menção deles.
Não lembro porque fiquei com a Dona Lúcia e meu irmão na casa dela. Acredito que é porque minha mãe tinha que trabalhar e, logicamente, a irmã de Dona Lúcia tinha que trabalhar. O melhor jeito era deixar as crianças todas juntas. E, assim, foi feito.
Não lembro de frequentar muito a casa dela, mas hoje tenho consciência que as havaianas não estavam por estilo, mas por falta de calçados. Minha mãe tinha o costume de doar coisas para eles, que agradeciam. Mas não era comum. A casa simples, não tinha encanamento adequado e imagino que o cheiro não seja de esgoto, mas do abafamento que a casa tinha por ser quente demais e não ter ventilação própria. A casa de madeira era precária e não dava conta da quantidade de gente.
Esse foi o meu primeiro contato com a pobreza. Era criança e não tinha ideia que vivia em um país desigual. Mas é país que vivo. Meus pais trabalharam por muito tempo com as empresas na escala 6X1 e a babá estava lá por causa dessa escala. Os empregados estavam em nossa casa no sábado por causa disso. O pai das crianças, sobrinhas de Dona Lúcia, não estava lá porque também trabalhava na escala 6X1. A irmã de Dona Lúcia estava cuidado dos sobrinhos por causa dessa escala. E todas nós crianças nos reunimos naquela casa simples de madeiras pintadas de verde porque a escala 6X1 existiu e ainda existe.
Meus pais trabalharam nessa escala. E por trabalhar muito queriam que a vida dos filhos fosse diferente. E para uma geração onde quem tinha faculdade era doutor, o ensino superior era o caminho.
Como sempre estudei, meus pais me incentivaram e nunca cobraram para trabalhar enquanto estudava. Eles tentaram de tudo para que eu não seguisse o mesmo caminho. Me formei em jornalismo, que não é uma área fácil. Mas que não tem a escala 6X1. O que temos é a escala 5X2, com plantões revezados. Pela Constituição, deveríamos trabalhar apenas seis horas, mas como os Sindicatos só fiscalizam a TV Globo e grandes empresas, acabamos trabalhando oito horas por dia. Mas temos fim de semana. Quando não temos plantões. Mas nem toda empresa faz plantão. Há lugares que você tem a escala 5X2, sem plantão. Meus dois últimos empregos formais eram assim. (Não significa que direitos trabalhistas eram respeitados e não tinha contato fora de hora, mas isso é outro assunto mais específico).
Já meu irmão não teve a mesma experiência. Inspirada em meu avô, minha mãe queria que os dois filhos tivessem faculdade. Ela, que começou, mas não terminou, queria também formar todos os filhos, assim como meu avô fez. Na família dos meus avós maternos, dos treze filhos, acho que apenas dois filhos fizeram alguma faculdade. Esse era o sonho de minha mãe.
Mas a dislexia do meu irmão não deixou. Ele chegou a começar algumas faculdades, mas não conseguiu terminar. Até porque eram faculdades com currículo muito difícil para quem sempre teve problemas na educação pública. Foi aprovado em federal em Engenharia Mecânica, mas não saiu de lá com diploma, mas sim com o diagnóstico de dislexia.
No intervalo entre uma faculdade e outra, meu irmão trabalhou em uma fábrica de queijos. Sabe aquele queijo President? Então, ele embalava esses queijos. A dica dele é buscar tentar ver como os queijos estão empilhados. Se a beirada está retinha, quer dizer que não houve mão humana na embalagem. Mas se tiver alguma fatia que estiver destoando na pilha de fatias de queijo, quer dizer que um ser humano teve que colocar um queijo a mais ou a menos, para que o peso da embalagem fique correto. Quem diria que máquinas fariam um trabalho ruim e seres humanos teriam que consertar, hein?
Nessa fábrica, ele trabalhava em um horário ingrato. Entrava de noite e saia de madrugada. Às vezes, nem tinha ônibus. Tinha que ajeitar o horário para conseguir ter ônibus para pegar. O sono ficava todo bagunçado. Além disso, praticamente não tinha folga. A escala? 6X1. E o pior, nem sempre batia com o fim de semana.
Ele não gostava muito do emprego e decidiu sair para voltar à universidade, mesmo tendo ganhado promoções dentro da empresa. Mas aí veio a pandemia e estragou tudo. Teve que voltar para a casa de meus pais porque as aulas foram interrompidas.
Nessa época, meu já tinha fechado as transportadoras que havia aberto. Depois de um longo tempo tentando montar uma empresa, decidiu ser caminhoneiro, para desespero da minha mãe. Não é pela fama de caminhoneiro ser galinha. Mas é porque minha mãe desistiu de terminar a faculdade, para ajudar a pagar a faculdade dele, no início do casamento. Minha mãe não deixa ele esquecer disso e toda oportunidade que tem para relembrar que ela não terminou a faculdade, mas ele terminou e virou caminhoneiro, ela faz questão de lembrá-lo disso.
Nesse meio tempo, minha mãe voltou para as costuras, enquanto meu pai era caminhoneiro. Ela começou a fazer artesanato. Com o fechamento das empresas, a babá, os empregados e as caixas na garagem já não existiam. As caixas deram lugar às máquinas de costura, tecidos e linhas. Meu pai, aos poucos, foi não tendo mais fretes para fazer e quando estava em casa, ele ajudava a cortar os tecidos. Não havia escala 6X1, mas havia agora o trabalho autônomo, que é inseguro e não tem horário.
Mas foi assim que minha faculdade foi paga. mesmo estando na federal, minha mãe vendia seus tapetes de patchwork (confiram no Instagram) na praça da cidade. O dinheiro ia para minha conta onde pagava o aluguel e as despesas, já que a bolsa-moradia mal dava para o aluguel dividido entre três meninas.
E assim foi indo até os dois conseguirem se aposentar. neste meio tempo me formei e voltei para a casa dos meus pais, onde comecei a trabalhar com jornalismo. Escala 5X2, com plantões. Mas os plantões eram em casa. Não precisava ir no jornal. Se fazia coberturas à noite, no outro dia tinha folga pela manhã. Postava as matérias da minha casa. Ia dormir às 2h, mas podia acordar no outro dia, às 11h. Era uma cidade pequena, então trânsito não era problema.
Nesse tempo, meu irmão se formou no Ensino Médio e começou a saga de minha mãe para que ele se formasse. Meu pai estava aposentado, mas tentava fazer fretes para conseguir aumentar a renda. Mas aos poucos, o custo foi aumentando e ele foi se endividando.
Até que minha mãe convenceu-o de vender o caminhão. Foi uma batalha para ele porque ele gostava daquilo. Era sofrido e difícil? Era. Não dava retorno? Não dava. Mas preenchia a alma.
Sem caminhão, mas aposentado, meu pai ajudou a minha mãe. Mas queria voltar ao mercado de trabalho. Como não era jovem e tinha dificuldade com computação, meu pai foi rejeitado em vários empregos. Meu pai começou a ficar depressivo por não conseguir voltar a trabalhar. Mas um antigo contato ajudou-o a encontrar uma vaga em uma empresa de transportes. Era para trabalhar no escritório.
Ele conseguiu, mas era um trabalho horrível. Nem tanto pela empresa, mas pelo superior dele que era praticante de assédio moral. Assim, a depressão veio aos poucos e deixou meu pai mais quieto. Minha mãe ficava muito preocupada. Foi difícil aguentar aquele trabalho, que era escala 6X1, ainda mais com assédio moral.
Mas ele aguentou. Era o emprego que buscava. Voltar a ser gerente numa transportadora. Um ramo que ele gosta e entende.
Até que um dia, a transportadora iria fechar. Mas veio uma proposta: meu pai poderia abrir uma empresa e ele assumia a terceirização. Meu pai queria topar.
Nesse tempo, meu irmão já tinha voltado para casa e começava a trabalhar nessa empresa. Meu pai tinha conseguido que ele uma vaga lá. Meu irmão tentou continuar a faculdade quando começaram as aulas remoto, mas não conseguiu. Ou melhor a dislexia não combina com aula remota. Ele também desistiu de seguir. Para não ficar parado, meu pai decidiu que ele trabalharia. Com ele.
Meu pai teve um histórico com muitas empresas fechando e abrindo. Lembro até hoje do almoço em que meu pai e meu irmão falaram sobre a proposta. Meu pai queria colocar a empresa no nome do meu irmão, enquanto ele trabalharia como gerente.
Confesso que até hoje acho uma loucura, mas a ideia fez com que meu pai e meu irmão tivessem uma qualidade de vida melhor. Conseguiram ter mais dinheiro. Depois de tantos anos e beirando os 70 anos, meus pais tem finalmente uma vida com qualidade material. Tem bens, casa e carro confortável com ar (o q é um luxo para a nossa família que no máximo teve um Fiat Uno), e minha mãe tem acesso a bens que deixam a rotina de dona de casa mais confortável como máquina de lavar roupas que seca, além de equipamentos como aspirador de pó e mops. Um luxo para quem começou a vida de casada com aquelas máquinas antigas de madeira que só batia a roupa e tinha que lavar as fraldas de pano. Na década de 80, fraldas descartáveis eram muito caras. Somente quando meu irmão nasceu na década de 90 que minha mãe usou as descartáveis.
Mas a escala 6X1 continua. Mesmo como donos do empreendimento, meu pai e irmão trabalham até nos sábados. Normalmente, é só pela manhã, mas em outros, o trabalho vai até à tarde. Acabaram decidindo que nesses dias, vão fazer um churrasco com os empregados. Já foram muitos sábados que meu pai trouxe carne assada para casa.
Para meu pai e meu irmão, o churrasco é um presente para os empregados. A equipe é pequena e a demanda é grande, mas o lucro muito escasso da empresa não permite aumentar a equipe. Assim, meu pai e meu irmão, apesar de trabalharem no escritório, também trabalham no descarregamento de cargas. Ou seja, o churrasco não é só um presente para a equipe, mas para eles mesmos que trabalham em todas as frentes.
Mas o que meu pai e meu irmão não percebem é que eles não são propriamente donos da empresa. Sim, no papel, meu irmão é dono e meu pai é o gerente. Mas na realidade, a empresa é o último lugar de uma cadeia maior e injusta.
Fiz todo esse histórico para assinalar como a escala 6X1 está atravessada em minha vida, mesmo eu nunca tendo atuado neste sistema. Mas meu pai e meu irmão tiveram experiências como trabalhadores nessa escala. Se tornaram empregadores e tenho certeza que são contra a redução da jornada 6X1.
Em conversas na família, de vez em quando conversamos sobre contratações. Tenho uma personalidade mais tolerante, então não saio militando sobre as coisas. Eles são conservadores e sabem que meu posicionamento é mais à esquerda. Sempre me identifiquei como centro-esquerda. Acredito que políticas públicas para bem-estar social com dinheiro público é uma maneira de reduzir desigualdade. E, logicamente, entendo que a redução de jornada pode ser um meio de evitar problemas de saúde que invadem o SUS e o próprio INSS, que tem que recusar benefícios a quem pede porque se der o auxílio-doença, que é direito de todo o trabalhador, o sistema quebra.
Mas eles não entendem isso. Como pessoas que foram afetadas pela escala 6X1 são contra a redução? Há diversos motivos, mas um deles é que eles viraram patrões. Agora são eles que mandam. Então decidiram que essa escala é melhor para a empresa. E, veja, eles ajudam e dão churrasco, por que os empregados não gostariam daquilo?
O que acontece é que eles ainda não se deram conta de onde estão. Como disse, eles são a base de um sistema de terceirizações. A empresa deles é privada, mas trabalha com uma empresa de logística, que envia fretes de uma outra empresa, que tem uma fábrica. Assim, são duas empresas que acabam incidindo no cotidiano dessa pequena empresa de transportes do meu pai e do meu irmão.
Essa pequena empresa pode fazer fretes com outras pessoas? Pode, mas é esse processo de terceirização que dá o rendimento suficiente para que meu irmão consiga pagar os salários dos empregados, incluindo meu pai que é o gerente, além de pagar o seu próprio pró-labore e as despesas da operação. Tudo isso, com a necessidade de ainda de fazer um caixa próprio, porque sabe-se Deus se uma nova pandemia vai surgir. A empresa precisa ter ao menos um caixa próprio para conseguir se sustentar por pelo menos três meses sem fazer negócios. Isso se chama capital.
O lógico seria: se estamos com um rendimento apertado, tendo mais demandas como a contratação de novos empregados e troca de equipamentos, logicamente precisamos aumentar o preço de nossos serviços, para conseguir atingir mais lucro. Seria isso, né? Não. Porque são uma empresa da base, acaba sofrendo influência das duas outras empresas que são bem maiores e bem mais ricas. Se comparado, o capital da empresa do meu pai e do meu irmão é uma bolinha de gude, da empresa logística é uma bola de basquete e a fábrica que está acima dos dois, tem a bola de plástico do Quico, da série Chaves. É essa a realidade.
Ou seja, o meu pai e o meu irmão estão presos nessa terceirização. Se aumentarem os preços, as empresas saem do negócio para procurar outra mais barata e eles não vão ter rendimentos suficientes para conseguir dar continuidade. Assim, tem medo de perder o negócio e não se colocam com uma empresa, mas como um local que aceita as pressões dessas outras duas empresas grandes, que poderiam pagar mais pelos serviços, mas não querem porque isso diminui o lucro delas. Mas o lucro da pequena empresa da ponta pode ser sacrificado. O resultado é que para conseguir ter algum lucro, é na carne dos caminhoneiros que é cortada, já que a empresa pequena oferece um frete abaixo do custo para o caminhoneiro, que é obrigado a aceitar porque não pode ficar sem trabalho. No fim, o patrão real é o dono da fábrica que está no topo da pirâmide e consegue a fatia maior, conseguindo aumentar seus lucros e rendimentos, beneficiando investidores que colocam dinheiro no negócio.
Mas quem disse que meu pai e meu irmão tem essa lógica? Eles muito medo de perder o negócio e não conseguir se sustentar. A não ser que encontrem outra empresa que pague o mesmo, o comportamento deles não é de dono, mas de empregados. Aceitam as injustiças das empresas maiores e acabam prejudicados.
A escala 6X1 existe, por exemplo, porque eles tem que trabalhar no sábado porque Curitiba decide lançar um monte de carregamento na sexta-feira. Mas em outros dias da semana, a empresa fica praticamente parada porque Curitiba decidiu não enviar os carregamentos antes. Há dias que meu pai e irmão decidem liberar os funcionários à tarde mesmo porque não há previsão nenhuma de carregamento.
E, lógico, tal como qualquer trabalhador, meu pai e meu irmão gostam desses dias. São momentos de descanso que todo trabalhador gosta. Há a preocupação de menos rendimento, mas a realidade é que o sentimento das folgas são as mesmas que um trabalhador recebe porque, na verdade, meu pai e meu irmão são trabalhadores. Não são empresários. Não são chefes. São trabalhadores. Mas com CNPJ.
A terceirização também me pegou. Hoje sou MEI e faço freelancer, mas a criação desse CNPJ veio através da pejotização na área de comunicação. Trabalhei na empresa de um cliente de uma empresa que me contratava por terceirização. Durante a pandemia, trabalhei no home-office e, simplesmente, não conseguia trabalhar só oito horas. Trabalhava das 8 horas da manhã até às 20 horas de forma on-line. Depois de três meses de lockdown, a empresa, que era cliente, mas atuava como minha contratante, decidiu ir para o presencial e eu fui obrigada a voltar a trabalhar presencial, mesmo com a empresa que eu tinha vínculo estivesse ainda remoto.
No presencial, sempre acabava fazendo hora-extra. Nunca pagas, é claro. Mas por mais que eu tivesse um CNPJ, nunca fui empresária. Hoje, me considero prestadora de serviço. Não tenho empregados. Mas faço meu horário e tenho flexibilização. Ainda assim, não sou empresária. É difícil ditar os próprios rumos em uma área precarizada.
Mas meu pai e meu irmão não tem essa consciência. Provavelmente, irão reclamar da escala 6X1 e, se tiver, aprovação, vão reclamar até não querer mais. Mas é porque não tem consciência que isso será benéfico. Eles não vão poder trabalhar no sábado. E, se tiver que trabalhar, terão que encontrar uma nova escala de trabalho. Meu irmão, que no papel é dono, quando volta no sábado, dorme a tarde toda. Isso é cansaço. Cansaço de um trabalhador. O dia de folga mesmo é só no domingo.
Toda essa história é para demonstrar que a consciência de classe é muito mais complicada de ter, especialmente em épocas de coach. Por isso, terá muitas pessoas que simplesmente vão ser contra a proposta. Mas ela não é maluca e sem pé, nem cabeça. Ela também não vai quebrar a economia.
O que a proposta vai trazer é mais qualidade de vida. É mais descanso. Em um mundo de produtividade, o que mais temos é depressão, ansiedade e burnout. Como ter produtividade enfrentando isso? É preciso entender que o descanso não é vagabundice, mas direito do trabalhador. E de todos, inclusive, terceirizados.
Por isso, a pressão é importante. Se tem consciência de classe e acredita que a redução de jornada ajudará o trabalhador, assine a petição. E pressione os deputados.